Há muito tempo não ouvia a cantiga do nosso carro-de-boi.
Hoje eu a ouvi e com bastante nitidez; é que ele estava cantando mesmo.
Prestei bem atenção, e o som era nítido de carro engraxado no eixo certo, no chumaço da leiteira e tala apertada no cocão, feito por um perito, pois há muita arte no canto do carro de roda dura.
A máquina do tempo girou e vi o Zote; somente ele conseguiria uma cantiga tão bonita. Ao mesmo tempo, distingui sua voz de trovão cantando junto com o carro:
Eu sou bonito.
Eu sou bonzão.
Eu sou gostoso.
Sou todo dela.
Naquele ano, a safra do café prometia ser muito boa, mas o que foi bom mesmo foi a colheita do milho, porque uma geada de última hora tinha tirado o tapete dos pés de muito fazendeiro bom.
Dois carros-de-boi trabalhavam o dia todo, de fio a pavio e ainda não davam conta de puxar o milho para o paiol.
Com medo da chuva, pedimos outros carros emprestados aos nossos vizinhos, e assim o movimento não parava; e era um entra e sai de camaradas que dava gosto ver. Tínhamos um ano de celeiro cheio, sem compra de comida para os porcos e para o gado de leite.
Não sei como apareceu o carreiro. Simplesmente apareceu de pés descalços, de camisa vermelha, um chapéu respeitável, um facão e um bruto cigarrão. Diziam que era criminoso e muito perigoso, mas que carreiro…
Em pouco tempo, dominava os outros todos, sem falar nos seis bois que, de repente, reconheciam nele o maior dos amigos.
Não aceitava outros bois, não. O de guia tinha que ser o Retrato, com seus chifres meio volteados, de 80 centímetros, o qual ele tratava como se fosse uma criança mimada.
Mantinha com os companheiros de serviço, os bois, uma lengalenga que ninguém entendia, mas dominava-os de tal maneira que podia dar marcha a ré com o carro e colocá-lo na garagem sem encostar-se a nada, com poucos centímetros de margem.
O carro vivia arrumado, com os fueiros todos do mesmo tamanho e com uma esteira bem urdida, como só ele mesmo sabia fazer. Com o cocão apertado cantavam os dois ao mesmo tempo, um fazendo coro para o outro.
Foi nessa tarefa que ele a conheceu.
Era mesmo uma “bodinha” ajeitada.
Um gingado de fazer inveja a qualquer Elba Ramalho.
Com a quebra do milho, a fazenda entrou em ritmo lento à espera da colheita do café; então devolvemos os carros emprestados e o serviço virou rotina.
Que diabo de coisa dera no Zote quando começou a querer serviço só para o lado do morro?
Propôs-nos puxar pedras para forrar o curral, um sonho que há muito alimentávamos, sem coragem de enfrentar para não judiar da boiada.
Mas ele fez tudo e não vi nenhum boi magro, nem mesmo os garrotes que estavam em aprendizagem com os bois mestres.
Todos os dias, já no final do trabalho, lá vinha o Zote cantando e fazendo o carro cantar:
Eu sou bonito.
Eu sou gostoso.
Sou todo dela.
Parecia que os animais sentiam o amor crescendo no peito do carreiro.
Do alto do morro, as pedras desciam para forrar todo o curral. Mas, infelizmente, o serviço chegou ao fim sem que o amor do caboclo fosse correspondido.
Acertamos as contas; lá ia o Zote para outras bandas. O carro ficou mudo sem que ninguém passasse sabão no eixo e os bois entristeceram.
Novas safras, novas boiadas e novos tempos. O vai-e-vem dos tratores dinamizando o serviço rural mudava completamente o aspecto da fazenda.
Entretanto, sempre que olhava as pedras do curral lembravame do Zote.
Onde estaria agora? Onde embalaria um carro-de-boi com sua voz de trovão?
Ninguém sabia…
Hoje eu ouvi de verdade, não havia dúvida.
A cantiga era a mesma e também o carro estava cantando macio acompanhando-o; eu tinha certeza.
Cheguei à janela e lá estava ele ainda organizando o arreamento dos bois.
Grisalho, mais magro, acompanhado de três bodinhos limpos e bonitos.
Um pouco encabulada, ali debaixo da árvore, a mesma cabocla que lhe enfeitiçara a alma de caboclo.
Eu sou bonito.
Eu sou gostoso.
E ela é toda minha…
Bem, agora eu tinha certeza de que o nosso carro não ficaria mais guardado e que, novamente, reinaria a alegria da cantiga do Carro de Boi.
Publicado em O Correio em 27 de setembro de 1986