Sempre quis fazer o curso de engenharia, pela paixão que dedicava à matemática, porém nunca recebi o estímulo de meu pai. Ele achava, e hoje vejo que tinha certa razão, que mulher deve ser professora.
Naquele ano, 1944, Belo Horizonte festejava a fundação da Faculdade de Filosofia na Casa d’Itália.
Todos queriam cursar os ramos de letras. Havia poucos profissionais formados e a remuneração era boa.
Assim é que ingressei no curso de Letras Clássicas, fazendo vestibular – uma verdadeira maratona de línguas mortas, que estudava varando as noites.
Logo logo comecei a lecionar, antes mesmo de terminar o curso – nomeada para a Escola Técnica do Ministério da Educação – onde, diga-se de passagem, ganhava-se bem e trabalhava-se pouco.
Lecionei também no Colégio Marconi, onde a faculdade funcionou por algum tempo, e na própria faculdade.
Entretanto, não me sentia realizada, ainda acalentava o velho sonho de enveredar no mundo estimulante dos números e resolvi fazer outro vestibular.
Desta vez passei na Escola de Arquitetura, que funcionava bem perto de minha casa, na Rua Paraíba. Passei!
O que escolher, pois havia outras opções. A dúvida tomou conta de mim e acabei optando por permanecer com minhas “queridas letras” e fazer outro curso paralelo.
Havia surgido no Parque Municipal uma nova escola mantida pela Prefeitura – a Escola de Belas Artes – onde me matriculei.
Deixei escapar a chance de enveredar pelas exatas, tomando o caminho dos sonhos, do belo, das artes.
A escola era o refúgio de um homem inesquecível – O Mestre Guignard. Havia uma boa professora de teoria – D. Edith -, mas a figura dominante era a do mestre.
Quem o conheceu sabe que ele era uma pessoa muito especial e, naquele tempo, nós, colegas, o achávamos um pouco misterioso, escondendo talvez um passado no qual não podíamos penetrar.
Era grande, grandalhão mesmo, vermelho, afobado, meio desajeitado e o defeito de “lábios leporinos” enorme e mal corrigido por uma prótese mal feita, fazia dele uma figura caricatural, com voz rouca, soprada e cheia de perdigotos.
Era, porém, uma imensa figura de gênio. Sua genialidade maior estava nas mãos e acho que também nos olhos, quando dava um
passo atrás, para calcular os traços perfeitos que imprimia nas telas.
Lápis duro, crayon ou pincel, espórtulas, telas, – nem sei descrever bem – eram seus instrumentos de trabalho.
Uma tela, uma folha de papel em branco sofriam a magia de sua inspiração e se transformavam em obra de arte. Mas havia ainda alguns pormenores.
Ele geralmente chegava atrasado, já de guarda-pó comprido e, como a professora já tivesse determinado os exercícios, percorria os cavaletes, avaliando os desenhos com espírito crítico, sincero.
A voz soprada – ainda o ouço exigir “Lápis Fáber nº 2”. Será que ainda existe?
Ele cobrava esforço, para que nossas mãos adquirissem a maleabilidade de artista. Era desenhar, desenhar… e desenhar.
Ficava bravo quando notava qualquer deslize nos planos, nas cores, no conjunto, e dizia:
– Enxerga, menino! Está tudo errado! Sem cerimônia, rabiscava o desenho e corrigia as imperfeições.
Às vezes, achava que o trabalho podia ficar melhor e desenhava outro ao lado – perfeito. Foi assim que consegui uma coleção de desenhos seus, que infelizmente foram para o lixo, numa destas arrumações de gaveta que as mães nunca devem fazer no quarto dos filhos.
O Mestre era também um desprendido. Na metade do mês, anunciava: “Estou duro!”. O salário já se convertera em material para os alunos mais pobres e em bebidas para ele e seus amigos.
Muito frequentemente, ele afogava suas angústias no álcool. Dona Ariadne, alguns alunos e os amigos mais chegados o levavam para tomar refeições em suas casas, para que ele se alimentasse melhor.
Era uma delícia a nossa “escolinha” do Parque, tão pobrezinha.
Para sobreviver, nós, alunos, tivemos de improvisar uma festa no lago do Parque. Ficou linda, não rendeu muito, mas liquidamos algumas contas.
Quando a Prefeitura liberava alguma verba, Mestre Guignard contratava um modelo e então passávamos a manhã toda desenhando o nu, enquanto ele explicava um pouco de anatomia, que conhecia como ninguém, pois tivera excelentes professores na França e Alemanha.
Assim que o dinheiro acabava, arranjávamos flores silvestres ou pintávamos paisagens do próprio parque, que era bucólico e belíssimo. Algumas ainda conservo.
Havia ainda outras opções: levar de casa uma peça artística bem bonita ou levar amigos(as) para serem retratados.
Quando o Mestre se interessava pelo modelo, o retrato ficava pronto em quatro ou cinco dias e ele doava o quadro a quem posava, com moldura que ele mesmo fazia e arrematava com têmpera.
Assim era Guignard!
Certo dia, levei minha melhor amiga – Maria Abadia, a nossa Lilia, moça linda e inteligente – para servir de modelo, por uma semana.
O retrato dela nas mãos do Mestre ficou um primor e foi parar, não sei como, no Museu de Arte Moderna do Rio, onde foi consumido por um incêndio (li no jornal).
Pois não é que nosso professor, que era um sentimental, ficou apaixonado por ela? Apaixonadíssimo! Só não foi correspondido.
De vez em quando ele vinha muito aflito saber por que ela não aparecia e enviava-lhe por mim alguns bilhetinhos muito mal escritos, declarando-lhe o grande amor. Ela os olhava só de relance.
Minha amiga tinha muitos apaixonados, incluindo o nosso amigo Paulo Mendes Campos, mas seu sonho era alçar voo e conseguir vida nova e diferente no Velho Mundo.
Guignard enviou-lhe o lindo retrato, feito com todo o amor de mestre e de homem.
Logo arranjaria outra musa.
Nesta mesma época (1947), por falta de modelo, ele me escolheu para posar e valeu a pena.
Lembro-me do professor todos os dias, pois o retrato que ele pintou e me presenteou prontinho, está dependurado em minha sala de visita e nele se vê a genialidade do artista e nem tanto a beleza do modelo.
Com o tempo, nós nos tornamos amigos e acrescentei várias outras qualidades ao artista: o prazer que ele sentia em colocar diante de nós a beleza das paisagens, a sensibilidade das flores, a expressão de um rosto, a imaginação avançando além da realidade.
Esta era a chave: imaginação além da realidade.
Quando havia feriado, ele planejava uma excursão a Mariana, Ouro Preto ou Sabará.
Íamos de trem, cheios de apetrechos e alegria e lá passávamos o dia desenhando fachadas de igrejas, ruas de escadinhas, casas do século passado, imagens de santos ou de anjinhos barrocos, imagens esculpidas em ouro – cenas que reviviam a glória do Império e a riqueza das Minas Gerais. Fazíamos croquis e trabalhávamos o desenho na escola, posteriormente.
Nestas ocasiões, o Mestre tornava-se jovem como os alunos.
Que tempo bom!
Lembro-me de uma vez em que o serviço rendeu pouco. Era tempo das famosas jabuticabas. Um colega comprou dois pés carregadinhos e lá fomos todos fazer uma verdadeira festa!
Casei-me e quase desapareci de Belo Horizonte, da rua Ceará onde vivi tanto tempo, e fui perdendo a vivência da Escolinha do Parque. Hoje, com 72 anos, procuro captar e juntar na memória a figura dos colegas que se perderam nas brumas do passado.
Os jornais falam deles, artistas de sucesso, mas minha memória os desenha como eram.
Estevão – era talentoso e cheio de dificuldades financeiras.
Vendeu-me um quadrinho genial, retratando a Praça da Lagoinha, por cem mil réis, pois estava precisando de dinheiro.
Ione – também guardo um quadro dela e, não sei se ela se lembra, fui madrinha de seu casamento com o Edmur. Ione ficou como secretária da Escola, para administrar as finanças, caso contrário, ninguém pagava as mensalidades.
Maria – fazia aquarelas com muita arte e sutileza.
Mario Silésio, Amílcar de Castro e…
Surge uma outra figura em minha memória. Os olhos!
Solange… que retratava os olhos dos modelos com a maior perfeição.
Onde estão vocês?
Um segredo: eu não era talentosa, mas como lucrei nos três anos de convivência com professores e colegas!
Muitas vezes procuro a nossa escolinha.
“É preciso ver, enxergar além da realidade.”
Era o Mestre mostrando o que deveríamos fazer para desenhar bem.
“Ensinar a ver” – “Treinar, disciplinar mente e mãos” – “Perceber os diversos planos em que as coisas se encontram na natureza” – “Retratar com genialidade os fatos corriqueiros da vida”.
Foi este último item que o traiu.
É que me encontrei com Guignard duas ou três vezes na década seguinte. Estava meio prostrado, meio adormecido, tentando solucionar os problemas da vida quotidiana.
Eu o entendo hoje.
É que ele já dera a solução ao gênio que tinha dentro de si. O resto… Bem, o resto não o afetava mais.
Aqui vai o meu agradecimento a você, Guignard, por me mostrar um pouquinho de seu mundo mirabolante de gênio: o sonho!
Ainda vou sonhar, pensando em você. Como esquecer?
Obrigada!