Como se precisasse pedir licença para penetrar num terreno sagrado que o tempo cobriu.

A vida era tranquila lá no oeste de Minas onde nasci. A família tinha feito enorme modificação ao mudar-se de Abadia (Martinho Campos) para Bom Despacho, a convite do Valadares (parente do então governador de Minas) para que meu pai, que era o melhor dentista da região, fosse trabalhar em centro maior.

Eu nasci em 1924, em Alberto Isaacson e fui registrada em Martinho Campos quando já cursava o segundo ano primário.

Recebidos de braços abertos, fomos morar na confortável e espaçosa casa paroquial, que ficava atrás de uma grande igreja.

Logo, logo, arranjamos novos colegas, amigas e amigos e meu pai trabalhava desesperadamente para atender a fila de clientes.

Modéstia à parte, o velho era um gênio de habilidade manual com aquelas enormes mãos e deslocava seus 120 quilos como se fosse uma pluma.

Em Bom Despacho não tinha mais tempo para ser músico de banda e por isso aproveitava as constantes idas a Martinho Campos para tocar e visitar sua mãe, a Maria Geraldina Corgosinho (música também).

O dinheiro entrando, a família ficou importante e minha mãe, Maria Carvalho, passou a andar bem vestida, com muitas amigas da nata da sociedade e foi deixando para trás os hábitos provincianos e o linguajar de quem vem do campo.

Quanto a nós, os três filhos mais velhos – Ester, eu e Geraldino – não conhecíamos a “roça” senão para passear e aproveitar as delícias da fazenda “Pulador”, tão bem administrada pela minha vó materna, a Vó Xica e que contava com o carinho do Vô Paulino para trazer sempre renovado o pomar que era uma verdadeira maravilha. Naquela ocasião, o vovô ainda não ostentava a barba branca que adotou quando foi roubado por seu cunhado Dinho.

Pulador era perto – quatro léguas da cidade e pertencia à comarca de Bom Despacho – de modo que mamãe “contava garganta” de ter nascido em cidade melhor do que a do papai e dizia que ele era da “Abadiola” e ela de Bom Despacho.

Vizinhos bons, os Gontijos e os Valadares introduziram nossos pais na sociedade, enquanto nós participávamos de todos os movimentos da criançada e desde pequenos dançávamos nos clubes.

Bem vestida, muito inteligente e bonita, Maria Carvalho não era a mesma de antigamente. Gostava de tudo e, muito sociável, conquistava a todos com seu jeito encantador.

Papai se fez dentista prático, estudando e trabalhando em Pitanguy, onde moravam seus ancestrais. Ele se gabava de pertencer aos clãs dos Capanemas e de ser descendente do velho literato.

Corgosinho de Carvalho Filho, seu bisavô. Deste herdara, certamente, o grande amor pelas letras e pelos estudos, amor que cuidou de incutir nos filhos.

Foi nesta linha de pensamento que o dentista prático fez a mulher estudar em um colégio de Minas Nova para completar o curso secundário, contando com a colaboração das freiras, que elogiavam o esforço e a obstinação da estudante que criava três filhos.

Um anúncio no jornal

Os dentistas práticos podiam fazer um curso livre de odontologia em Alfenas e formar, tornando-se necessário renovar a licença anual para exercer a profissão.

O velho ficou logo entusiasmado e se comunicou com o “Mestre”, o Mário Malaquias e os três filhos deste, todos dentistas práticos, na mesma situação.

Combinaram o encontro e rumaram para Alfenas, em busca do tão sonhado diploma.

Ainda me lembro das artimanhas para passar “cola” para o velho Malaquias, que era mestre sim, mas na teoria perdia para os moços.

Uma ideia!

Papai gostava das viagens e logo verificou que mamãe também podia estudar farmácia e levou a sugestão para casa.

Verdade é que ela tinha medo de não conseguir com o pouco estudo que tinha. Era tentar, já que o marido insistia.

Assim, antes mesmo que o velho colasse grau, lá ia ela experimentar o curso.

Foi uma verdadeira batalha e, para vencê-la, foi preciso buscar em Belo Horizonte a nossa velha tia Honorina, que tomaria conta da casa na ausência da titular.

Papai trabalhava dobrado para conseguir dinheiro para as suas despesas, enquanto estava ausente, e para dar conta de sustentar a casa e os estudos da mamãe.

Veio a formatura do velho.

Foi uma vitória nunca vista e ainda posso ver a alegria estampada na fisionomia de todos, quando ele exibiu o seu “pergaminho” – enorme, lindo e do qual não tenho notícia. Onde estará?

Depois desta primeira maratona vencida veio a segunda, mais complicada.

Mamãe precisava viajar sempre para Alfenas, mas os filhos precisavam dela. A solução foi levar um filho a cada semestre. A Ester foi a primeira, eu a segunda. O Geraldino acabou não indo, pois era tão levado que não podia ficar longe do papai.

A vida da família ficaria tumultuada durante três anos.

Quando era o papai que saía (às vezes saiam os dois ao mesmo tempo), ele tinha a paciência de colar várias moedas de prata na porta do guarda-louça, para que tivéssemos sempre o dinheiro em mãos.

Além da Vó Honorina, tínhamos outro guardião: o Pedro Siqueira, auxiliar do gabinete do papai, que morava conosco.

A Vó Honorina era uma pessoa que marcou nossas vidas com sua bondade e paciência. Todo dia 04 ela recebia a pensão deixada por meu avô, Dr. Geraldino de Carvalho, engenheiro da Rede Ferroviária Federal e nesta data cada um de nós recebia um dinheirinho para comprar balas e quitutes. Era uma festa!

O Pedro Siqueira também foi importantíssimo para todos nós. Ele já era formado quando foi trabalhar com papai, mas não tinha prática, que adquiriu com o velho. Esforçado, ele chegou a se tornar diretor da Escola de Odontologia de Alfenas. Assim como o papai o ajudou, mais tarde ele ajudou o Geraldino a se tornar dentista também.

O interessante é que foi meu padrinho de casamento, assim como do Geraldino e da Ester.

Com tantos fatos para contar, acabei me desviando de um que não me sai da lembrança: minha viagem para Alfenas, acompanhando minha mãe.

Os preparativos começavam uma semana antes. Era preciso arrumar as roupas, as “matulas”, os livros, balancear o dinheiro, uma confusão.

Tudo pronto?

Tomávamos o trem de ferro Maria Fumaça, nesta época já com bitola larga.

Delícia! Bom Despacho ia ficando para trás e meu olhar ficava fixo para saber quando é que se deixava de ler os escritos brancos e garrafais pregados na grama do 7º Batalhão de Caçador Mineiro: “Tudo pela Grandeza do Brasil”.

Ter-mi-nou! Já não é mais Bom Despacho. Sentia-me desligada do meu mundo. Pequeno mundo!

E olhem – uma fagulha foi bem dentro de meus olhos.

Esfrego e esfrego até que minha mãe diz que não o faça e tapa meus olhos com um lencinho de sua bolsa.

Olha, dizia ela, estamos chegando em Leandro, que nós apelidamos de Broanópolis.

– Vamos arranjar alguém que desça ligeiro e nos compre as famosas broas. Com esta notícia, não me lembrei dos olhos e fiquei na expectativa…

Viajávamos parte do dia e lá pelas tantas, abríamos o primeiro pacote de “matula”. Não tinha plástico não, era tudo envolvido no pano e depois em papel. Eram dois frangos para comer de maneira planejada. No primeiro dia, frango empanado que antigamente tinha o nome de coxinha. No segundo dia, farofa. Estas delícias a gente repartia com amigos, pois sempre havia algum ou mesmo se a gente fizesse amizade com gente estranha (isto não era importante).

A Capital do Estado

Pensava que fosse outra coisa. Era apenas uma cidade maior, com mais ruas, mais gente, mais luzes, mais lojas, tudo mais.

Chegamos à estação e tomamos uma condução para chegar ao Hotel Gontijo, propriedade das “irmãs Cançados”, primas de meu pai. Anos depois elas fizeram força para que eu me casasse com o sobrinho delas, mas isto é outra história.

Madrugada chuvosa, cidade grande e triste como as fazendas com chuva. Mais triste ainda – a água fica sem rumo. Lava mas não cria.

Entretanto era preciso embarcar. As aulas de mamãe começariam daí a dois dias e ela não podia perder nada, pois já se considerava mais atrasada do que os outros.

Dormia… acordava… comia… os olhos cansados de ver paisagem, os longos uivos da locomotiva penetrando na escuridão.

Era longe… tão longe!…

Estava na hora da baldeação (nem sabia o que era), mas minha mãe avisava que ficasse esperta para não deixar nenhum pertence no trem. Íamos trocar de trem em Serrana.
Baldeação, baldeação!!! Anunciavam os carregadores e nós tínhamos três malas, fora os embrulhos. Era melhor pagar e foi o que ela fez, seguindo de perto o velho carregador como se desconfiasse dele.

Quantas horas? Não me lembro. Sei que chegamos com as roupas amarrotadas, exaustas e com vontade de tomar um bom banho.

Dona Clara, a dona da pensão, já nos esperava com sorrisos, abraços e votos de boas vindas. Fora avisada por telegrama, que era o meio mais rápido de comunicação.
No dia seguinte, conhecer a nova escola e as colegas foi um prazer indescritível.

Durou pouco tempo; logo voltaríamos a Bom Despacho e eu frequentaria as aulas da professora Rita Cançado que me acompanharia até o 4º ano primário.

O diploma conquistado por Maria Carvalho teve efeito espetacular.

Seria a primeira mulher a conquistar um diploma de curso superior em nosso meio.

Aliás, Bom Despacho recebia muito bem as pessoas que conquistavam tal galardão.

Banda de música na estação e o povo a ovacionar a vencedora de tantos sacrifícios. Lógico que teve baile animado pelo conjunto de músicos do batalhão. Dançamos a noite inteira. Foi a glória!

Agora me vem uma dúvida. Acho que foi nesta ocasião que mamãe perdeu uma placa com seis enormes brilhantes de uma pulseira trabalhada com ouro português de várias tonalidades. No meio da confusão, abraçando e sendo abraçada, pagou caro a sua auréola da fama. Durante muitos anos meu pai pagou um detetive para investigar e procurar o feliz “achador” da fortuna. Tudo em vão.

Uma farmácia ultra moderna foi instalada na casa que os velhos compraram e que dava frente para a famosa igreja. Foi nesta época, já com o Corguito grandinho, que a família viveu época de prosperidade, época das “vacas gordas”.

Única farmacêutica formada e também muito amiga dos Gontijos, do Dr. Miguel Gontijo e depois do Juca, irmão da Lígia, a farmácia ia de vento em popa.

A conquista do diploma foi a fase áurea da pequena que saiu do Pulador, viajou em aventuras pelo Norte de Minas em busca de dinheiro para obter uma casa confortável, encontra um filão que lhe traria muita sorte e importância, mas, infelizmente, seria a causa futura de um esgotamento nervoso que a levou a mudar-se para Belo Horizonte, em busca de tratamento. Levava consigo cinco filhos (a Miriam tinha apenas quatro meses) e três anos depois ainda viria a Tina. Começava o período das “vacas magras”, mas isto também é uma outra história.