A noite era escura e uma grossa chuva lavava a estrada e encharcava o viajante que se arriscara pelos rincões de Minas Gerais.
À frente dele uma tênue luz filtrava pela fenda de uma janela que estava bem próxima.
No seu “pangaré” cansado, João Felipe via que nada mais restava a fazer senão pedir um pouso na choupana à frente.
Foi recebido pelo único ocupante da casa e como a chuva se intensificasse, entrou rapidamente e foi declinando sua missão naquele território.
Sentia-se um ser humano necessitado de auxílio. Afirmou ser viajante, mas prestes a virar fazendeiro, já que comprara umas terras ali pelas redondezas.
– Não sabia exatamente onde, disse.
A conversa foi longa, cheia de informações dos dois lados.
O mineiro solitário avivou o fogo, ouvia… a chuva caía.
A terra que buscava o caminheiro era ali por perto, bem na divisa, do outro lado da estrada.
Conversa vai, conversa vem e, em pouco tempo, os dois se conheceram, se apresentaram, ficaram íntimos e finalmente o viajante tirava sua capa de chuva e sabia que podia descansar.
As informações do velho eram precisas e segundo ele, a compra fora boa e as terras da Fazenda Água Limpa, de primeira, mas no momento, quase abandonadas.
O papo continuou acalorado noite adentro.
Lá às tantas o viajante mostrou-se cansado e faminto.
– Tenho pouca coisa; ofereço-a de boa vontade.
Apenas um pão e um ovo.
– Creio que darão apenas “para não morrer de fome”…
Uma frigideira com um pouco de gordura e logo fritou o ovo bem passado e improvisou um sanduíche prontamente devorado com uma porção de café quente.
Enquanto se acomodavam para passar a noite, a chuva foi também diminuindo…
A manhã era radiosa e só trazia vestígios do temporal da véspera.
Agradecimentos e despedidas.
– Que seja feliz na sua nova empreitada, eram os votos do velho ao novo vizinho.
– Se tudo der certo, espero um dia pagar sua generosidade.
Tudo dera certo e muito certo; as lavouras prosperaram e o gado se multiplicou, fazendo do Sr. João Felipe um dos mais prósperos fazendeiros da região.
O velho continuava na mesma cabana e sempre recebia do vizinho algum pagamento por trabalho prestado.
Um dia a notícia de um “veio” de ouro nas terras de João Felipe, divisa com as do “velho”, trouxe alegria e prosperidade para todos da região.
Foram dias felizes, quando todos puderam fazer dinheiro extra cavando a terra e lavando cascalhos. Não se falava de outra coisa.
João Felipe tinha sido o maior contemplado, mas o “velho” também soube aproveitar sua chance de ficar independente. Os dois ficaram ainda mais amigos.
Na passagem do ano, querendo celebrar suas “venturas”, o fazendeiro convidou os vizinhos para um churrasco de comemoração.
Lá se encontrava o velho que também levava o seu abraço.
A bebida corria solta e João Felipe se dava ao luxo de abusar um pouco.
Felizmente trabalhei muito e fui vitorioso e tenho até o desplante de me considerar um homem que não deve nada a ninguém!
Pensando bem, devo. Ainda não paguei apenas uma dívida: um sanduíche de pão com ovo frito que recebi do meu velho amigo aqui presente numa noite de tempestade.
Para passar a vida a limpo, gostaria de liquidar esta dívida agora mesmo.
– Vamos, fale, caro amigo, quanto lhe devo pelo sanduíche que recebi em sua casa pra matar a minha fome?
– Mas deve ter um preço, insistia João Felipe.
Pediram a outro amigo que fizesse o levantamento.
Calculando tudo, inclusive o fato de o ovo virar galinha, chegaram a uma bela quantia que o fazendeiro se negou a pagar. Achou exorbitante.
– Nada pedi, foi você quem me ofereceu para pagar.
– Não, isto tudo não pago. A festa estava “morrendo” pelo efeito negativo da inusitada discussão.
– É muito simples, disse alguém, vamos encarregar dois amigos para resolver a pendenga.
Um defendendo o velho exorbitou uma importância ainda maior. Todos ficaram atônitos.
O outro, defensor do fazendeiro, pediu uma frigideira, gordura, um ovo e um pão. Fritou o ovo e abriu o pão fazendo um sanduíche tal qual o do dia da tempestade. Sabem o que desejo provar?
Entregou o sanduíche ao “velho” dizendo:
– A dívida está paga – Quando você fritou o ovo, você matou qualquer possibilidade de crescimento dentro dele.
Ora, um ovo frito é um pinto morto, por isso, sem poder de germinação, um sanduíche de ovo frito não pode crescer.
Apenas a obrigação, amigo, esta fica, não pode ser paga, a menos que você a desobrigue.
O velho aceitou o sanduíche de ovo frito e disse:
– Amigo, você nada mais me deve.
Continuaram a ser amigos?
O que você acha?…
Versão publicada em O Correio em 20 de janeiro de 1993.